sexta-feira, 4 de março de 2016

Capítulo 7: Lembranças - Parte 3-

Paloma tentava lembrar-se do que acontecera. Estava deitada numa canoa parcialmente queimada. Sua cabeça doía e um zumbido lhe impedia de ouvir qualquer outra coisa.

- Papai?- tentou gritar Paloma, mas sua garganta estava tão ardida e seca que as palavras saíram quase como um sussurro.

A água do rio batera mais uma vez com força na canoa que encalhara nas margens do antigo porto. A vibração da água e da canoa acordaram de vez Paloma, que assustada tentava se levantar. Meio zonza, ela se apoiou na canoa para tentar sair. Na primeira vez, caiu novamente dentro da barco, na segunda vez se impulsionou para fora e caiu novamente, mas desta vez em terra firme.

Sentou-se na beira do rio e bebeu um pouco de água, esperando que isso aliviasse a sua dor de garganta, mas a sensação de ardência continuava. As estrelas brilhavam naquela noite e a Lua que estava na fase cheia, era refletida pelo rio que calmamente seguia seu curso. A sua cabeça ainda doía um pouco, mas a sensação de tontura passara.

Levantou-se vagorosamente e olhou para uma antiga placa que estava próxima. Primeiramente não acreditou no que leu, mas após ler novamente, estava claro. Na placa estava escrito: “Seguir as normas de transporte aquático salvam vidas! Qualquer dúvida procure o posto mais próximo da Marinha do Brasil.”

-Estou no Brasil!- concluiu Paloma. Olhou para o horizonte em busca do porto que ficava do lado argentino, mas só conseguia ver fumaça e fogo. O pânico tomou conta de Paloma.

-Juan! Jose!- tentou novamente gritar, mas foi em vão. Paloma estava pela primeira vez em sua vida sozinha.

Ela perdera a noção do tempo e acabou por adormecer próxima a canoa. O sono foi cheio de pesadelos e sentimentos ruins. Uma leve cutucada a fez acordar assustada. Um senhor de meia idade calmamente esperava o seu despertar apoiando-se na sua velha bengala.

- Bom dia menina.- disse docemente o senhor. –Você parece perdida, não? Está com fome?-

A palavra fome lhe despertou uma forte dor no estomago. Estava faminta. Paloma sem dizer nada somente gesticulou com a cabeça um sim. Com um sorriso, o senhor lhe estendeu uma mão. Subiram lentamente o morro que separava o porto da pequena vila.

Paloma olhou uma última vez para traz, além do rio, para a pequena vila do lado argentino. A vila havia sido reduzida a fumaça e escombros.

A cidade de Porto Mauá, antes das bombas tinha uma população de menos de três mil habitantes, que viviam da agricultura e da pesca, além de uma parcela da população ser composta por funcionários públicos que trabalhavam no tráfego e na fiscalização na ponte que unia a Argentina e o Brasil.

Embora parecesse abandonada, a cidade possuía alguns moradores que viviam nas casas mais próximas das áreas de plantio do que na beira do rio, pois enchentes eram recorrentes e algumas delas o rio chegava a subir mais de vinte metros, inundando as ruas centrais da vila.

Na rua central existiam indícios ainda de uma inundação recente. A sujeira e o lodo cobriam grande parte do asfalto. Alguns carros estavam tombados e outros haviam sido arremessados pela força da enchente em casas e estabelecimentos. Porcos e vacas vagavam pela rua em busca de alimento.

O senhor que se apresentou como Deodoro vivia próximo à ponte que uma vez unira as duas maiores nações da América do Sul. Era engenheiro e trabalhou no projeto da construção da ponte. Na época, trocou a agitação de Porto Alegre por essa cidadezinha para aproveitar a sua aposentaria que nunca chegou.

Deodoro nunca teve desejou ter filhos nesses seus 50 anos de existência, mas depois dos 40 anos sempre pensar em adotar. Para ele o mundo estava conturbado e cheio de pessoas e conflitos, para que ter mais pessoas sofrendo nesse mundo?

-Chegamos, mocinha.- disse educadamente Deodoro, tirando a sua boina que escondia o seu cabelo grisalho. – Mas antes de estramos, quero saber seu nome.-. Depois que ele parou de rir, envergonhadamente, ela respondeu.

-Meu... nome Paloma.-

-Muito prazer senhorita Paloma.- falou Deodoro cumprimentando novamente Paloma. – Entre menina, vamos! João já deve ter servido o café da manhã.-.

A casa térrea era espaçosa e bem iluminada com grandes janelas de vidros que davam a sensação de uma casa bem confortável. Na sala de estar, a televisão servia como uma central de monitoramento, com câmeras que vigiavam os arredores da propriedade. Da cozinha vinha um cheiro delicioso de pão quentinho.

-Espere aqui menina.- sussurrou gentilmente Deodoro enquanto se dirigia a cozinha. Paloma deu algumas voltas pela sala observando alguns quadros e pinturas que estavam pendurados na parede. 

No canto esquerdo da sala um pano cobria um piano que parecia que a muito tempo ninguém tocava.
Paloma tomou um susto quando a porta de cozinha voltou a abrir. De lá saiu o João. Diferentemente de Deodoro, ele era alto e seu cabelo não era totalmente grisalho. Deveria possuir mais ou menos a mesma idade que Deodoro.

-Então você é Paloma?- observou João meio desconfiado. –Venha para a mesa! O café está servido. -

- Pos-pos posso lavar minhas mãos antes? Perguntou Paloma

-Primeira porta depois do corredor. - respondeu João apontou em direção próxima ao piano.

Ao adentrar no corredor, as luzes automaticamente foram acessas. A porta do banheiro estava entreaberta e quando ela entrou a luz do banheiro também acendeu.

Olhou-se no espelho, seu cabelo ruivo estava desarrumado com pequenas folhas presas nele. Seu rosto embora doesse da noite passada, não tinha sinais de corte, apenas de fuligem e sujeira. Lavou suas mãos igualmente sujas e o seu rosto rapidamente.

-Vamos lá Paloma, você consegue falar português. Eles foram gentis com você! Talvez saibam o que aconteceu... –

Ela havia aprendido um pouco de língua portuguesa na escola, até que as bombas caíram e a sociedade entrasse em colapso. Seria difícil, pois até o presente momento ele deveria ter conversado em português uma ou duas vezes somente fora da escola. 

Secou o seu rosto e voltou para cozinha, onde João e Deodoro já haviam começado a comer o desjejum.

-Vamos menina, sente-se!-

Paloma sentou-se e pegou uma fatia de pão e colocou no seu prato. Próximo dela havia um pote com uma geleia que parecia ser de uva ou amora. Passou a geleia no seu pão e começou a comer lentamente.

-Então... Paloma- começou Deodoro a falar, - o que traz você para essa linda e desolada terra chamada Brasil? – rindo um pouco da sua própria fala, serviu um copo de suco de laranja num copo e ofereceu para ela.

Bebendo quase todo o copo, Paloma respirou fundo, a sensação do suco descendo em sua garganta e matando a sua sede era maravilhosa. A geleia que era de uva estava soberba e o pão ainda estava quente, indicando que havia saído a pouco do forno. Eles pareciam ser boas pessoas. Deodoro convidou-a para ir a sua casa sem pensar duas vezes, mesmo João que era mais reservado lhe passava uma sensação de segurança.

Sem pensar duas vezes, Paloma calmamente contou a história da sua vida. Misturando nas frases palavras em português e em espanhol, falou de sua família antes do apocalipse, dos momentos que fugiram até chegar em Oberá, dos momentos de terror que viviam ali até a fuga da cidade e a chegada na fronteira ainda do lado argentino. Sobre como chegou até o lado brasileiro ou do incêndio do outro lado ela não se lembrava de nada.

João deu um abraço em Paloma e Deodoro pegou em suas mãos. Ela começou a chorar na presença dos dois estranhos que entraram em sua vida. Depois do café, Deodoro achou algumas roupas e ofereceu para que Paloma pudesse tomar um banho.

-Não se preocupe menina- disse Deodoro apontando para o chuveiro do banheiro – pode demorar o quanto quiser. –

Enquanto a agua do chuveiro descia rapidamente sobre o seu corpo, seus pensamentos estavam em seu pai e nos seus irmãos. Onde estavam? Estariam bem? Se estivessem bem, porque teriam deixado ela sozinha?

Demorou mais de trinta minutos no chuveiro. Vestiu a calça jeans masculina e a camiseta xadrez cinza que pelo tamanho deveria pertencer a João.

Ao abrir a porta do banheiro, ouviu sons que pareciam ser do piano. Entrando na sala apoiou-se na parede e observou João tocando uma melodia que era familiar para Paloma.

-Gosta de música clássica, menina? -

-Nunca fui uma apreciadora, mas elas me relaxam. –

Ele parou de tocar. Olhou mais atentamente para Paloma e observou como as roupas ficaram nela.

-Você está linda com essa roupa. Tem bom gosto. –

Paloma começou a rir.

-Sabe Paloma, que esse piano eu ganhei de presente de Deodoro? Era o nosso aniversário de 10 anos de casado e ele sabia que há muito tempo atrás eu tocava piano. E então um dia ele me levou para um jantar numa barco no meio do rio e quando voltamos o piano estava aqui na sala. –

-Que lindo. - Respondeu amorosamente Paloma.

-Sim – concluiu João com um sorriso – o melhor dia da minha vida. –

Ele levantou-se e levou Paloma para conhecer o resto da casa. A casa era composta por mais dois quartos e uma garagem. Indo para fora de casa, havia vários painéis solares no telhado e uma grande cisterna subterrânea que armazenava água. Atrás da casa, algumas plantações e um enorme galpão continha algumas vacas e dois cavalos.

Logo depois de voltarem para dentro da casa, Deodoro chegou a casa. Ele trazia consigo algumas frutas e peixe que trocara por parte do leite que suas vacas produziam naquele dia.
Era meia tarde e ela resolvera dar uma volta para conhecer melhor as redondezas. Vagueou por algumas casas abandonadas, olhou por vitrines vazias, cujas lojas foram saqueadas ou que a própria enchente levara todas as mercadorias. Antes de voltar para casa resolvera olhar a antiga ponte mais de perto.

Na estrada que levava ao pátio de espera para cruzar a fronteira, dezenas de veículos encontravam-se abandonados, cujo seus donos provavelmente preferiram cruzar a ponte a pé enquanto os guardas dos dois lados inutilmente tentavam impedir esperando por alguma resposta emergencial de seus governos que nunca chegou.

Em alguns carros ainda era possível observar malas e objetos deixados para trás. Paloma tinha apenas doze anos quando as bombas caíram, mas lembra de algumas noticias que ouvira falando sobre a falta de informação em embaixadas e posto de fronteira deixaram as coisas mais caóticas. Avançando em direção a entrada da ponte, entrou com cautela na ponte, lendo as inúmeras placas com informações em espanhol, português e inglês.

Andou apenas 20 metros sobre a ponte até encontrar o ponto onde ela havia entrado em colapso com a explosão feita pelos moradores das redondezas. Perto do fim da ponte sentou-se em uma motocicleta. A moto embora sofrida com a ação do tempo, ainda estava firme, apoiada pelo pé. Levantou-se da moto para pegar um capacete sem viseira que estava próximo e sentou-se novamente.

Colocando suas mãos no guidão da motocicleta, e imaginou por algum tempo que pilotava a moto, dirigindo pelas terras desoladas da América do Sul. Alguns gritos no rio despertaram-lhe da sua fantasia continental. Alguns pescadores estavam terminando mais um dia de trabalho, e os gritos eram apenas algumas palavras proferidas por eles.

Nisso Paloma percebera que já haviam se passado algumas horas desde que resolvera passear e o sol já estava se pondo. Permitiu-se ficar mais um pouco e observar as misturas de cores que o céu trazia somente nesse horário. O firmamento estava ricamente colorido, conforme tons de laranja, o vermelho e o rosa se misturavam ainda mais com o sol se despedindo no horizonte, trazendo mais uma noite.

Ao chegar a casa, encontrou Deodoro e João assistindo alguns filmes antigos. Eram filmes caseiros que os dois filmaram de suas viagens pelo Brasil e pelo exterior. As risadas preencheram o ambiente, onde os dois contavam algumas histórias que aconteceram nessas viagens para Paloma.

Alguns dias haviam se passado e Paloma não conseguia se lembrar de o que acontecera naquela noite em que acordara do lado brasileiro. Toda vez que se lembrava de sua família, um misto de sentimentos, de impotência, de solidão e medo invadiam sua mente e seu corpo. Tentava manter esse pensamento longe, ajudando os seus dois benfeitores nas tarefas da propriedade, embora nunca tenham conversado diretamente sobre morar permanentemente com eles, fora ficando e sendo aceita na vida deles.

Paloma acreditava em destino, sorte e carma. Quem sabe fora o destino que lhe trouxe um encontro inesperado perto do antigo porto naquele dia 16 de fevereiro.

Depois de ajudar a tirar os animais do galpão, Paloma resolveu dar uma volta até o porto para olhar em direção ao local que vira a última vez sua família. Nenhum sinal de reconstrução ou de limpeza ocorreu no local onde o incêndio havia destruído toda a pequena vila argentina.

Sentou-se em uma pedra na beira do rio, seus pés sentiam a agua gelada que corria rapidamente em direção ao sul. O céu estava limpo e o sol já iluminava todo o céu. O vento que embora fosse fraco, mas constante, as vezes abafava o som das águas e das aves.

Paloma ouviu alguns passos vindos em sua direção. Era um dos moradores das redondezas que carregava o seu equipamento para mais um dia de pesca. Era um homem moreno, usando um chapéu de palha para se proteger do sol, e deveria ter mais ou menos com 30 anos, deduziu Paloma.

O homem estava conferindo o seu equipamento de pesca e proferiu algumas palavras ofensivas para si em espanhol, quando percebeu que havia esquecido alguns anzóis.

-Você fala bem espanhol- disse Paloma em castelhano, segurando algumas risadas.

O homem ficou envergonhado a perceber que ela havia entendido as palavras ditas por ele.

-É meu idioma nativo. Vivi minha vida inteira em Mercedes até tudo começar a desandar. Vim para o Brasil pela ponte, anos antes deles explodirem ela. -

-Desculpe pelas palavras feias de antes menina, - continuou o homem, - meus filhos ficam usando meus equipamentos, mas nunca colocam de volta no lugar.

Paloma riu. Continuou conversando com ele por alguns minutos. Murilo tinha dois filhos, e ele e sua esposa geriam uma casa de passagem para viajantes que precisavam passar a noite em um lugar seguro.

-Esses dias, uns grupos de sete pessoas chegaram com presa lá em casa, - comentou Murilo – estavam com alguns ferimentos, um senhor estava em estado mais grave. Queriam partir mais um homem que estava com o grupo os convenceu que passar uma noite tranquila seria melhor para todos. –

Paloma ficou pensativa. -Poderia ser sua família e outros sobreviventes que foram procurar ajudar? Teriam deixado ela para no porto para ser buscada depois e como acabou indo embora seus irmãos não lhe acharam? -

-Como eram essas pessoas? – perguntou esperançosamente Paloma. Antes de Murilo responder, ela descreveu os seus irmãos e seu pai, acreditando que pudessem ser eles.

Murilo pensou um pouco.

-Não irei te dar falsas esperanças, mas de todos que você descreveu, um parecia ser como você descreveu. Jovem, uns vinte e poucos anos, moreno e olhos verdes. Quem seria esse? – perguntou Murilo curioso.

-Juan, meu irmão. – Disse Paloma.

-Sabe para onde eles estavam indo?- perguntou.

–Podem não estar muito longe. – pensou Paloma.

-Eles estavam procurando algum lugar para curar os ferimentos do senhor que estava com eles. Aqui não temos médicos, então minha esposa sugeriu alguns lugares maiores que poderiam ter alguém que pudesse ajudar. Talvez Tucunduva, Três de Maio ou Horizontina, mas não tenho certeza para onde poderiam ter ido. -

Sem dizer adeus a Deodoro e João, saindo somente com a roupa do corpo e uma garrafa d’água, Paloma partiu. Seguindo por rotas abandonadas e como guia somente as placas e alguma informação ou outra que conseguia por moradores ou por viajantes que cruzavam as rotas.

Caminhou durante dias, o sol castigava, mas evitava andar a noite, preferindo se esconder em alguns carros ou construções abandonadas por medo de possíveis malfeitores percorrendo as estradas. Sem comida e pouca água que às vezes encontrava em riachos ou poças, sua saúde ficou frágil.

Era começo da noite de 27 de fevereiro quando chegou ao portão da cidade. Naquele dia Fernando estava na vigia quando percebeu duas fracas batidas. Resolveu verificar por uma pequena janela para ver quem era. Paloma havia desmaiado, estava fraca demais para continuar de pé.

Fernando então a carregou até a enfermaria que ficava ao lado da delegacia. Lá Beatriz e ele acomodaram como melhor podia Paloma, enquanto esperavam o seu pai buscar o médico que estava em Três de Maio.

Nos dois dias que ela ficou adormecida, Fernando e Beatriz se revezaram em seus cuidados, que embora não fossem nada graves, exigia acompanhamento. Era o primeiro dia de março quando Paloma acordou.

Fernando estava lendo numa poltrona que ficava próxima a porta do quarto onde ela estava deitada. Ao perceber que ela havia acordado, ele saiu rapidamente do cômodo, alguns minutos depois ele apareceu novamente com um copo d'água, do qual Paloma bebeu rapidamente.

-Qual o seu nome?- perguntou timidamente Fernando.

-Paloma- disse ela risonhamente.

Eles conversaram um pouco. Antes de acabar seu turno, Fernando trouxe uma rosa para Paloma e disse:

-Bem vinda a Horizontina. Espero que encontres o que procura. –