terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Capítulo 7: Lembranças - Parte 2-

Horizontina, 1º de maio de 2048

No mundo antigo, diga-se de passagem, antes do apocalipse, o dia primeiro do mês de maio comemorava-se o dia internacional do trabalhador. Essa data raramente é lembrada nos dias atuais. Horizontina deveria ser um dos poucos lugares onde a ideia de descanso nessa data ainda era lembrada.

Fernando havia saído antes de o sol nascer, tinha ido ajudar seu pai em alguma tarefa. Paloma estava sozinha, e diferentemente do que Fernando achava, ela gostava de ficar sozinha. Nessas horas onde o barulho cessava, a cabeça dela funcionava a pleno vapor. As flores que decoravam a mesa haviam sido colhidas de um dos inúmeros jardins abandonados pela cidade.

As flores davam um toque de alegria e perfumavam naturalmente o ambiente, o perfume das flores faziam Paloma se lembrar dos tempos que era criança, no interior da província de Entre Rios, na Argentina. 

As flores que perfumavam sua infância haviam sido murchadas naquele fatídico dia em 2038. Depois disso até o começo de 2044, as flores não pareciam que voltariam a nascer na sua vida.
Foi até o quarto e pegou um pote plástico que guardava algumas fotografias de seus pais e irmãos. No fundo do pote, um pequeno saco plástico transparente continha uma velha flor já desbotada. Havia ganhando do Fernando no primeiro dia de março de 2044. Fora um gesto ingênuo dele, mas a partir daquele dia sua vida e a dele mudaram.

Se não tivesse perdido tudo naquele mês de fevereiro, talvez a sua vida fosse completamente diferente.

Mas então, naquele fevereiro agitado, tudo mudou.
            
Oberá, 2 de fevereiro de 2044.

- Sem armas a partir daqui, seus argentinos sujos!- gritou um miliciano próximo em espanhol.
Paloma estava com seus dois irmãos mais velhos Estevan e José esperando seu pai voltar da fila do armazém. Embora Oberá fosse uma cidade da antiga Argentina, um grupo de brasileiros havia feito o caminho inverso de muitos hermanos que fugiram para o Brasil. Na cidade de Oberá e seus arredores, Bento Santos criou seu próprio feudo e dominava a cidade a mãos de ferro.

Estevan entregou a arma de caça que ele possuía e começou a conversar em português com o soldado que ficava próximo do portão de um antigo supermercado. Estevan era de um tempo anterior das políticas de integração linguística dentro dos países sul-americanos. Dificilmente uma criança nascida posteriormente a 2025 não sabia falar as duas principais línguas do bloco. A população mais velha se arranjava no bom e velho portunhol.

A população em sua maioria argentina sofria com escassez de alimentos e eram cidadãos de segunda classe se comparado com uma minoria de brasileiros residentes no local. As melhores armas e os armazéns estavam nas mãos dos brasileiros. Antes do apocalipse quando se falava em rivalidade Brasil e Argentina eram evidentes nos campos de futebol, clássicos mundiais. Hoje a rivalidade havia se misturado com o ódio. Os dois eram latentes e por demais perigosos.

Entre palavras em português e espanhol, Estevan perguntou ao soldado o motivo da demora da fila que parecia não se mexer. Antes de perceber o soldado empurro-o e disse somente a palavra “tumulto”.

Paloma havia completado seus 18 anos a alguns dias e de presente seu pai lhe prometeu uma nova vida, e esse era o plano para hoje a noite. A fuga. A liberdade. O cheiro de conspiração nas ruas de Oberá não era paranoia de Bento Santos. Somente o seu desprezo pela população nativa deveria ser maior do que o desprezo que eles sentiam por ele.

Essa paranoia fez com que grande parte dos soldados em serviço fosse remanejados para os arredores do palácio governamental, onde Bento morava junto com suas 3 esposas e meia dúzia de filhos. As ruas mais distantes da cidade sofriam saques e incêndios, o mercado onde era pego a ração semanal era um dos únicos pontos fora da região do palácio que ainda era efetivamente comandado por Bento e seus asseclas. 

Contando com o guarda que empurrou Estevan, visivelmente havia 13 soldados armados com AK47 e mais militares dentro de um tanque. Ao total menos de 25 soldados estavam fazendo guarda nesse ponto chave. Paloma ajudou Estevan a levantar-se do chão e começou a acalma-lo.

- Irmão, lembre-se o que papai nos pediu. – Disse Paloma enquanto ajeitava a franja do cabelo de Estevan. – Guarde essa energia para mais tarde. –

Antes de Estevan dizer algo, José pediu o silencio dos dois irmãos. O que parecia ser uma discussão estava se tornando um empurra-empurra nos primeiros lugares da fila.

- O que esta acontecendo? – Perguntou Estevan ainda meio confuso.

Bastou um tiro próximo da entrada do mercado para assustar tantos os guardas quanto os civis. Um civil havia entrado com um pequeno revolver escondido e feito o disparo. Esse disparo foi o início do caos.

O plano que era fugir de Oberá na madrugada precisaria ser revisto. O empurra-empurra acabou virando uma revolta contra os militares que tentaram fechar as portas do supermercado em vão. Os civis começaram a saquear o que viam e fugiam dos tiros disparados por soldados despreparados.

Jose pulou em cima do guarda que havia empurrado Estevan que tentava fechar o portão que dava acesso ao mercado. Paloma correu em direção à arma do irmão que estava junto com outras armas que os guardas haviam revistado dos civis. Ela entregou a arma para José e correu em direção a Estevan que com raiva chutava o guarda que já estava desarmado e rendido no chão.
Paloma empurra Estevan para trás e fica entre ele o guarda desacordado.

- Irmão, não vale a pena. Não seja como ele. – Disse Paloma.

Estevan cuspiu em direção ao soldado já desmaiado, agarrou as mãos de Paloma e puxo-a para trás de um carro fora da linha de tiro.

- Voltarei irmã, fique aqui!- Disse Estevan enquanto corria em direção a José que estava atrás de uma caçamba de lixo atirando contra os soldados. Jose entregou uma pistola para ele. Sorrindo, Estevan pega a arma e começa a disparar em direção do guarda que estava se protegendo próximo ao tanque.

Paloma começou a cantar uma musica na sua mente enquanto tapava suas orelhas com suas mãos. O barulho de tiro estava intenso e seu medo era perder seus irmãos e seu pai hoje. Não poderia perde-los.

O som de tiros foi abafado por uma explosão. Ninguém dos militares ou dos civis ali presentes possuíam armas capazes de explodir um tanque. Ao leste o som de trombetas indicava que a NACION POPULAR ARGENTINA estava por trás da explosão do tanque. Os militares restantes fugiram em direção ao centro enquanto as tropas rebeldes da NPA avançavam em posição de ataque para perseguir os soldados restantes.

O fogo se espalhou na área do mercado. Entre a fumaça, Jose e Estevan tiraram seu pai das proximidades do mercado até uma antiga praça localizada próxima ao mercado. Respirando com dificuldades, ele fora alvejado na altura do abdômen. Não poderiam levar seu pai para o único médico da cidade, pois qualquer ferimento a bala deveria ser comunicado as autoridades e na atual situação até o médico deveria estar na comitiva de Bento Santos.

- Não importa o que acontecer comigo crianças...- disse Nestor, respirando com dificuldades. – Vamos partir agora! Juan já deve estar nos esperando. - .

Saindo dos domínios de Bento Santos a sensação de segurança aumentara na cabeça de Paloma. Embora não lembre muito da sua vida antes da chegada a Oberá. A falta do barulho da cidade lhe caia bem. Partira os quatro em dois cavalos já preparados para a viagem em direção a encosta do rio Uruguai.

Eram cinco horas da tarde quando chegaram a um antigo vilarejo onde ficavam as bolsas que seguiam em direção à cidade brasileira de Porto Mauá. O vilarejo do lado argentino, viviam algumas família que vendiam seus serviços de transporte entre as fronteiras e a comercialização de itens para viagens.

Na rua do porto das bolsas, Estevan e Jose desciam Nestor do cavalo com cuidado e com a ajuda de Juan levaram para a sua casa. Enquanto isso, Paloma observava o rio em direção ao porto do lado brasileiro. Alguns barcos pesqueiros já estavam parados, estacionados esperando o próximo dia de pesca. Observando um pouco mais longe, conseguira avistar a famosa Ponte das Nações, que se encontrava em ruínas.

Paloma não deveria lembrar-se da história da ponte que fora inaugurada em 2034 e funcionou por algum tempo até tudo acontecer. Depois da queda dos Estados argentino e brasileiro, a ponte servia como ponto de fuga dos dois lados que buscavam melhores condições de vida. O problema começou em 2041 quando uma grave seca atingiu território da antiga argentina em detrimento de uma época de bom clima do lado brasileiro. O êxodo maior de argentinos causaram diversos problemas com os brasileiros da área de fronteira se tornaram constante.

A população de Porto Mauá e de moradores das povoações vizinhas resolveu contornar o problema argentino de uma maneira bem rápida. No dia 12 de junho de 2041 a ponte foi parcialmente destruída, impedido a livre circulação de pessoas de modo seguro. Parte dos que resolveram atravessar pelo rio acabaram sendo alvejados pelos moradores.

Paloma voltou para si depois do relinchar de um dos cavalos, levando-os até uma sombra onde os amarrou. Correu para a casa de Juan, avistando seus dois irmãos sentados num banco do antigo jardim de inverno da casa. Estevan bebericava um chimarrão enquanto Jose não parava de dar voltas dentro do pequeno cômodo.

-Como está papai?- perguntou apreensiva Paloma.

- Juan disse que ele vai sobreviver, chegamos a tempo aqui, graças a deus – suspirou Jose, - Devemos pensar como agiremos agora. Papai queria que atravessássemos logo a fronteira, mas agora não sei se continuamos ou esperamos as coisas melhorarem. -

Estevan esboçou uma resposta, mas ao perceber que Juan lhe chamava seguiu em direção ao cômodo que parecia um antigo escritório.

- Não quero saber como o seu pai levou o tiro ou o modo que vocês chegaram aqui, mas quero que saiba que vocês são bem vindos para ficar o tempo que precisarem, mas preciso ser franco com você Estevan. – Juan pensava como proferiria as próximas palavras – mas creio que seu pai não sobreviverá caso partam hoje. Ele está fraco e precisa de máximo repouso.

- Conheci seu pai na época da Guerra Civil Paraguaia em 2019. Servimos no mesmo batalhão durante o conflito. – Estevan ficou surpreso. Seu pai nunca havia contado que participara da guerra. Ele era apenas uma pequena criança quando a guerra civil nas antigas fronteiras paraguaias estourou. Batalhões dos países vizinhos invadiram quando após um golpe-de-estado o ditador rompeu com A Comunidade Sul-Americana e perseguiu cidadãos dos países membros alocados dentro das terras paraguaias.

Após os batalhões de pacificação tomarem Asunción, a antiga nação paraguaia fora assimilada pela República Argentina e pelo Brasil, tornando-se um Estado com estatuto especial dentro do território das duas nações. Amplamente criticado pela comunidade internacional pelo o que muitos consideraram como uma anexação arbitrária, nada além de críticas vazias saiu do Conselho de Segurança da ONU e das outras potências.

Estevan lembrou que estudara a Guerra Civil Paraguaia durante o colégio e era um tema recorrente nas aulas de Relações Internacionais que cursava na Universidade de Córdoba. Não chegou a concluir o curso, como muitas outras cidades, Córdoba fora bombardeada. Estevan estava na casa de seus pais no interior de Oberá.

- O que será que estão conversando lá dentro irmão? – perguntou Palome curiosa.

- Não consigo ouvir Paloma, mas creio que vamos adiar a ida ao Brasil.- respondeu em Jose em seco.
A porta do escritório se abriu. Juan apertou a mão de Estevan antes de seguir para dentro de sua casa. Estevan se aproximou alegremente em direção aos seus irmãos, e antes que Paloma perguntasse algo, ele disse:

- Por hora ficaremos aqui. Até nosso pai se recuperar, Juan é um velho amigo de papai.-

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Passara uma semana que haviam chegado nessa pequena comunidade, Nestor já andava novamente, e os planos para cruzarem a fronteira se concretizariam na noite do dia seguinte. Mas o improviso foi necessário, pois não esperavam o que aconteceu naquela noite.