Horizontina,
vinte de abril de 2048
Depois de aquele
pequeno ataque de nervos, Fernando resolvera ir à sua antiga casa na cidade.
Não era distante do centro, onde vivia agora. Seu pai embora tivesse residência
no seu hotel, ele nunca havia abandonado a antiga casa a qual havia comprado
quando se casara com Amélia.
As ruas mais próximas
que ficavam de fora da muralha estavam limpas, sem entulhos ou acúmulo de
sujeito. Conforme se distanciava dos portões, as pequenas ruas que saiam que
cortavam as vias principais mostravam os dez anos de abandono. Como sempre
ouvia em discussões e na televisão: No final a natureza retomaria tudo.
Casas que sempre
tiveram jardins impecáveis se tornaram verdadeiras florestas, pássaros e outros
pequenos animais eram comuns serem vistos saindo de uma janela ou porta que
fora esquecida aberta. Algumas casas que foram consumidas por um ou outro
incêndio o sinal do retorno da natureza era maior. Paredes que haviam
permanecido em pé eram atravessadas por raízes, troncos e galhos.
As ruas asfaltadas
ainda resistiam bem. Rachaduras aqui e ali permitiam que algumas espécies de
plantas pudessem sobreviver lá, mas conforme as ruas de asfalto eram
substituídas por ruas de pedra, pouco restava à mostra. Os caminhos mais usados
para locomoção ainda resistiam, mas logo, arvores e arbustos maiores
floresceriam também.
Na rua da sua antiga
casa, entre várias casas tomadas pelo tempo e carros esquecidos, uma casa era
singular. A grama aparada, as arvores próximas podadas e uma pequena horta
cuidada aonde era um terreno abandonado. Estava em casa. Seu pai estava lá,
colhendo os últimos vegetais da safra de abril.
- Essas alfaces estão
bem bonitos pai. –
- Espere para ver as
abobrinhas. Vão ficar ótimas num ensopado. –
João Henrique largou as
alfaces e deu um abraço em Fernando.
- Como vão as coisas no
hotel? –
- Vai bem filho. Com o
fim de abril chegando, sabe que maio é um mês bem parado, mas estou esperando
alguma agitação quando chegarem os transferidos de Piratini. –
- Sim, sim pai. Estou
para chegar nos próximos meses os militares para guarnecer a região, e mais
alguns comerciantes e suas famílias na região. O prefeito está formando uma
força tarefa para restaurar algumas residências e lojas comerciais para
oferecer para os novos moradores. Sabe que embora Três de Maio e Horizontina sejam
cidade amigas, sempre tiveram uma rivalidade para atrair investimentos e
pessoas. –
- É verdade filho, mas
me seja franco, filho você não veio aqui só para ver como estava a minha horta
não é? –
Todos esses anos e João
Henrique ainda sabia ser irônico com os filhos. Essa resposta pegou Fernando de
surpresa.
- É... Na verdade vim
visitar a mãe. Faz tempo que não a visito. –
- Sem problemas filhos,
só não desapareça depois... Como nas últimas vezes. –
Fernando entrou pela
porta da frente enquanto seu pai ria descontroladamente.
Dentro da casa, os
mesmos quadros, as mesmas fotos estavam lá, no mesmo lugar que sempre
estiveram. A casa estava limpa, impecável. Parecia que estava a espera deu uma
visita importante, mas hoje em dia quem teria muito tempo para visitas?
Olhou cada cômodo da
casa, cada objeto. Tudo lembrava tempos que não voltavam mais. Na garagem, o
carro que nunca voltara a funcionar estava lá. Limpo como se tivesse saído de
um lava carro.
Saindo da casa por
trás, observou a pesada porta onde levava ao bunker. Desde a primeira vez que
havia saído da primeira vez a pouco mais de dez anos, nunca mais quis entrar
novamente nesse espaço. Havia quebrado essa promessa apenas uma vez, numa noite
a mais de sete anos. Desviando o olhar da porta foi em direção ao túmulo onde
sua mãe repousava.
A lápide dizia: Amélia
Ebner Costta, 12/02/1990 - 18/03/2041
As lembranças de sua
mãe traziam conforto e paz de espírito, mas também certa inquietação. A morte
de sua mãe fora prematura, mas também era provável naqueles dias. Sem medicação
apropriada e imunidade fraca qualquer ser humano pereceria. Aqueles dias
anteriores da morte de sua mãe foram dias especialmente agitados.
Horizontina, 17 de
março de 2041
O relógio estava com
seu tic-tac habitual e constante. As engrenagens do relógio funcionavam como um
corpo perfeito. Se fosse para comparar com Fernando e Amélia, estes pareceriam
um relógio com defeito. O único som que interrompia o som habitual do relógio
era os trovões que não cessavam mesmo depois do fim de um dia de tempestade, e
barulhos de artilharia pesada.
Os argentinos haviam
imigrado em massa para terras brasileiras, o que causou escaramuças espalhadas
em toda a fronteira não contaminada. Muitos grupos vieram organizados com
armamentos e táticas militares. Doutor Maurício Cardoso estava a três dias
tomados por quase uma centena de platinos e estes tentavam se expandir.
Estavam a 5 km de
Horizontina e todo o homem e mulher apta estava na luta. Mas não havia só
horizontinenses na batalha. Três-maienses, santa-rosenses e até alguns
militares profissionais da Cidade Livre de Santo Ângelo estavam na luta para
impedir o avanço argentino. Fernando havia se ferido no dia anterior com
estilhaços de uma bomba e estava com o rosto machuco com um enorme corte.
Beatriz e João Henrique
estavam em linha de frente. Horizontina que estava com metade da construção de
uma muralha no seu centro estavam com as obras paradas, algumas pessoas já
haviam fugido esperando pelo pior. Naquele dia com a ameaça de a defesa ceder e
Horizontina ser invadida, Fernando e Amélia estavam no bunker.
Amélia embora não
tivesse ferida pelas batalhas, estava doente fazia alguns dias. Começara como
uma gripe comum, mas a febre insistia em não diminuir. Simples antibióticos
resolveriam o problema facilmente, mas em tempos que se as vezes se briga até a
morte, comida e remédios se tornaram valiosos e perigosos. Numa mesa de canto
ao lado da porta, um revólver com duas balas, caso fosse necessário.
O bunker não estava
lacrado como quando as bombas explodiram. Uma pequena fresta mantinha um mínimo
de circulação no ar, substituindo os filtros que já não funcionavam mais.
- Odeio esses barulhos,
me deixam ainda mais angustiada. –
- Os trovões ou da
artilharia mãe? –
- Os dois. Nunca gostei
de trovões, e a cada barulho de explosão ou tiroteio, me fazem lembrar que eles
estão lá fora lutando. –
- Pelo menos não está
chovendo mãe. Com chuva você mal escuta os tiros e as explosões. –
- Pelo menos (...) –
Uma explosão distante
assustou os dois.
- Essa pareceu mais
perto Fernando. –
- Calma mãe. Eles sabem
se cuidar. –
A tosse de Amélia
estava mais seca, nem conseguiu responder Fernando, apenas concordou balançando
a cabeça. Amélia acabou caindo no sono, à febre a deixava quase o tempo todo
dormindo, mas Fernando não conseguia descansar. Sentia-se um inútil. Não
conseguiu nem ajudar a defender seu lar e muito menos conseguia ajudar sua mãe.
Fernando empurrou a
porta do bunker um pouco. Queria sair, respirar um pouco o ar frio da noite. O
céu poderia ser dividido em dois naquela noite. Em direção ao sul as nuvens de
chuva ainda produziam trovões, ao norte as estrelas tomavam conta, a lua estava
lá como sempre. Um objeto ainda piscava no céu em ritmo cronometrado. Seria um
satélite ou uma das estações espaciais?
A batalha acontecia ao
norte, Fernando conseguia ver fumaça no horizonte. Os tiros estavam ficando
mais distantes. Será que estavam vencendo? Fernando resolveu acender um
cigarro. O cigarro embora fosse um vício, dava certo conforto e ajudava colocar
seus pensamentos em ordem.
O cigarro já estava no
fim quando mais uma explosão clareou rapidamente o horizonte. Antes de olhar em
direção aos combates, o clarão já havia desaparecido. Então tudo ficou quieto.
Os sons de tiros e de explosões se tornam tão comuns, que você somente nota
novamente se o som ficou mais alto. Se ficar mais alto pode significar que a
batalha está chegando mais perto ou que o grande ato das batalhas, daqueles que
podem mudar tudo, acontecer.
Nesses momentos, o
silencio pode nos indicar que tem algo errado no ar. O ambiente estava calmo.
Calmo até demais. Lançou para longe o pequeno resto do cigarro e entrou
novamente dentro do bunker, fechando com força a porta. Dentro do bunker o
único som era o da sua própria respiração e da sua mãe.
Por hora tudo estava
ok.
Fernando acendeu uma
vela e a colocou na mesa ao lado da arma, esta que seria a ultima opção caso
desse tudo errado. Pegou a arma e a examinou, estava em perfeito estado de
conservação e totalmente funcional. Embora Fernando não fosse um excepcional
atirador como sua irmã, ele tinha uma mira relativamente decente para alvos
parados.
Beatriz ao contrário,
parecia ter nascido para puxar o gatilho. Qualquer fosse o alvo, dificilmente
ela erraria. Quando os argentinos tomaram Doutor Maurício Cardoso, ela foi uma
das mais entusiasmadas para partir para a luta. Vivia a luta, respirava e
sentia prazer no que fazia.
Fernando colocou a arma
no lugar e respirou fundo. O cheiro do cigarro estava em suas mãos, na sua roupa
e no ambiente. Queria fumar mais um cigarro, mas conteve-se. Sua mãe agitou-se
um pouco, tossindo mais um pouco. A febre parecia estar pior a cada momento que
Fernando olhava sua mãe.
- Fernando? – O som mal
saiu da boca de Amélia
- Descanse mãe,
descanse. –
- Filho, eu não vou aguent...
– Um novo surto de tosse interrompeu a frase. Essa havia sido a pior até agora.
Fernando observando sua
mãe, percebeu que estava a perdendo.
Seus olhos castanhos
mal permaneciam abertos. A respiração cada vez mais lenta, seus cabelos que já foram
perfeitamente liso e arrumado estava totalmente desgrenhado. A sua aparência já
não condizia com sua idade. Em três anos ela envelhecera mais de 10 anos.
- Filho preste atenção
em mim. Não chore por mim, lembre-se dos momentos bons que tivemos. –
- Quero que faça algo
para mim Fernando. –
A respiração de Amélia
estava ficando a cada minuto mais lenta. Fernando mal controlava as lágrimas,
segurou as mãos dela contra a sua. Conforme suas mãos alisavam as mãos de sua mãe,
mais lagrimas apareciam. Estava desolado, o desespero tomava conta de cada
parte do corpo dele.
- Não, não, não, não mãe.
Não vou te perder. –
Fernando tentou engolir
os soluços e controlar a respiração.
- O que você quer que
eu faça mamãe? –
- Tem uma pessoa filho (...)
vai ajudar. Um amigo que perdi contato
antes da guerra. Ele... ele pode ajudar. –
- Quem é ele mãe? –
- Um amigo (...) possui
bastantes tatuagens, tem uma... que você iria gostar. Ele tem uma tatuagem de
(...) com cabeça de cachorro. Um deus. –
- Não entendi mãe. –
- Tatuagem de um deus,
de uma pessoa com cabeça de cachorro. –
- Anubis mãe?-
- Eu (...), creio
filho. Ele pode te ajudar quando o momento chegar e ele voltar para cá, ele
prometeu, mas antes disso prometa (...) não conte para seu pai ou sua irmã. –
- Promete? –
- Prometo mãe. Você não
me disse o nome dele, mãe...-
Fernando olhou para sua
mãe novamente. A respiração havia cessado. O desespero tomou conta de Fernando.
O choro que estava apertando para sair, se libertou. Fernando caiu no chão
feito uma criança.
Sua mãe estava morta.
Lembrou-se da arma. Abriu
o bunker e saiu com arma. Apontou em direção da sua testa.
A respiração ofegante,
a tontura, a dor, o ódio, a infelicidade. Fernando queria acabar com sua vida
agora mesmo, mas não conseguia disparar a arma contra sua cabeça.
Gritou como nunca havia
gritado. Tirou a arma de perto da cabeça e disparou as duas balas em direção
aos céus.