Horizontina,
1º de maio de 2048
No mundo antigo,
diga-se de passagem, antes do apocalipse, o dia primeiro do mês de maio
comemorava-se o dia internacional do trabalhador. Essa data raramente é
lembrada nos dias atuais. Horizontina deveria ser um dos poucos lugares onde a
ideia de descanso nessa data ainda era lembrada.
Fernando havia saído
antes de o sol nascer, tinha ido ajudar seu pai em alguma tarefa. Paloma estava
sozinha, e diferentemente do que Fernando achava, ela gostava de ficar sozinha.
Nessas horas onde o barulho cessava, a cabeça dela funcionava a pleno vapor. As
flores que decoravam a mesa haviam sido colhidas de um dos inúmeros jardins
abandonados pela cidade.
As flores davam um
toque de alegria e perfumavam naturalmente o ambiente, o perfume das flores
faziam Paloma se lembrar dos tempos que era criança, no interior da província
de Entre Rios, na Argentina.
As flores que perfumavam sua infância haviam sido
murchadas naquele fatídico dia em 2038. Depois disso até o começo de 2044, as
flores não pareciam que voltariam a nascer na sua vida.
Foi até o quarto e
pegou um pote plástico que guardava algumas fotografias de seus pais e irmãos.
No fundo do pote, um pequeno saco plástico transparente continha uma velha flor
já desbotada. Havia ganhando do Fernando no primeiro dia de março de 2044. Fora
um gesto ingênuo dele, mas a partir daquele dia sua vida e a dele mudaram.
Se não tivesse perdido
tudo naquele mês de fevereiro, talvez a sua vida fosse completamente diferente.
Mas então, naquele
fevereiro agitado, tudo mudou.
Oberá, 2 de
fevereiro de 2044.
Paloma estava com seus
dois irmãos mais velhos Estevan e José esperando seu pai voltar da fila do
armazém. Embora Oberá fosse uma cidade da antiga Argentina, um grupo de
brasileiros havia feito o caminho inverso de muitos hermanos que fugiram para o
Brasil. Na cidade de Oberá e seus arredores, Bento Santos criou seu
próprio feudo e dominava a cidade a mãos de ferro.
Estevan entregou a arma
de caça que ele possuía e começou a conversar em português com o soldado que
ficava próximo do portão de um antigo supermercado. Estevan era de um tempo
anterior das políticas de integração linguística dentro dos países
sul-americanos. Dificilmente uma criança nascida posteriormente a 2025 não
sabia falar as duas principais línguas do bloco. A população mais velha se
arranjava no bom e velho portunhol.
A população em sua
maioria argentina sofria com escassez de alimentos e eram cidadãos de segunda
classe se comparado com uma minoria de brasileiros residentes no local. As
melhores armas e os armazéns estavam nas mãos dos brasileiros. Antes do
apocalipse quando se falava em rivalidade Brasil e Argentina eram evidentes nos
campos de futebol, clássicos mundiais. Hoje a rivalidade havia se misturado com
o ódio. Os dois eram latentes e por demais perigosos.
Paloma havia completado
seus 18 anos a alguns dias e de presente seu pai lhe prometeu uma nova vida, e
esse era o plano para hoje a noite. A fuga. A liberdade. O cheiro de
conspiração nas ruas de Oberá não era paranoia de Bento Santos. Somente o
seu desprezo pela população nativa deveria ser maior do que o desprezo que eles
sentiam por ele.
Essa paranoia fez com
que grande parte dos soldados em serviço fosse remanejados para os arredores do
palácio governamental, onde Bento morava junto com suas 3 esposas e meia dúzia
de filhos. As ruas mais distantes da cidade sofriam saques e incêndios, o
mercado onde era pego a ração semanal era um dos únicos pontos fora da região
do palácio que ainda era efetivamente comandado por Bento e seus asseclas.
- Irmão,
lembre-se o que papai nos pediu.
– Disse Paloma enquanto ajeitava a franja do cabelo de Estevan. – Guarde essa energia para mais tarde. –
Antes de Estevan dizer
algo, José pediu o silencio dos dois irmãos. O que parecia ser uma discussão
estava se tornando um empurra-empurra nos primeiros lugares da fila.
- O que esta acontecendo? – Perguntou Estevan ainda meio confuso.
Bastou um tiro próximo
da entrada do mercado para assustar tantos os guardas quanto os civis. Um civil
havia entrado com um pequeno revolver escondido e feito o disparo. Esse disparo
foi o início do caos.
O plano que era fugir
de Oberá na madrugada precisaria ser revisto. O empurra-empurra acabou
virando uma revolta contra os militares que tentaram fechar as portas do
supermercado em vão. Os civis começaram a saquear o que viam e fugiam dos tiros
disparados por soldados despreparados.
Jose pulou em cima do
guarda que havia empurrado Estevan que tentava fechar o portão que dava acesso
ao mercado. Paloma correu em direção à arma do irmão que estava junto com
outras armas que os guardas haviam revistado dos civis. Ela entregou a arma
para José e correu em direção a Estevan que com raiva chutava o guarda que já
estava desarmado e rendido no chão.
Paloma empurra Estevan
para trás e fica entre ele o guarda desacordado.
- Irmão, não vale a pena. Não seja como ele. – Disse Paloma.
Estevan cuspiu em direção ao soldado já desmaiado,
agarrou as mãos de Paloma e puxo-a para trás de um carro fora da linha de tiro.
-
Voltarei irmã, fique aqui!- Disse Estevan enquanto
corria em direção a José que estava atrás de uma caçamba de lixo atirando
contra os soldados. Jose entregou uma pistola para ele. Sorrindo, Estevan pega
a arma e começa a disparar em direção do guarda que estava se protegendo
próximo ao tanque.
Paloma começou a cantar
uma musica na sua mente enquanto tapava suas orelhas com suas mãos. O barulho
de tiro estava intenso e seu medo era perder seus irmãos e seu pai hoje. Não
poderia perde-los.
O som de tiros foi
abafado por uma explosão. Ninguém dos militares ou dos civis ali presentes
possuíam armas capazes de explodir um tanque. Ao leste o som de trombetas
indicava que a NACION POPULAR ARGENTINA estava por trás da explosão do tanque.
Os militares restantes fugiram em direção ao centro enquanto as tropas rebeldes
da NPA avançavam em posição de ataque para perseguir os soldados restantes.
O fogo se espalhou na
área do mercado. Entre a fumaça, Jose e Estevan tiraram seu pai das
proximidades do mercado até uma antiga praça localizada próxima ao mercado. Respirando
com dificuldades, ele fora alvejado na altura do abdômen. Não poderiam levar
seu pai para o único médico da cidade, pois qualquer ferimento a bala deveria
ser comunicado as autoridades e na atual situação até o médico deveria estar na
comitiva de Bento Santos.
- Não importa o que acontecer comigo crianças...- disse Nestor,
respirando com dificuldades. – Vamos
partir agora! Juan já deve estar nos esperando. - .
Saindo dos domínios de
Bento Santos a sensação de segurança aumentara na cabeça de Paloma. Embora não
lembre muito da sua vida antes da chegada a Oberá. A falta do barulho da
cidade lhe caia bem. Partira os quatro em dois cavalos já preparados para a
viagem em direção a encosta do rio Uruguai.
Eram cinco horas da
tarde quando chegaram a um antigo vilarejo onde ficavam as bolsas que seguiam
em direção à cidade brasileira de Porto Mauá. O vilarejo do lado argentino,
viviam algumas família que vendiam seus serviços de transporte entre as
fronteiras e a comercialização de itens para viagens.
Na rua do porto das
bolsas, Estevan e Jose desciam Nestor do cavalo com cuidado e com a ajuda de
Juan levaram para a sua casa. Enquanto isso, Paloma observava o rio em direção
ao porto do lado brasileiro. Alguns barcos pesqueiros já estavam parados,
estacionados esperando o próximo dia de pesca. Observando um pouco mais longe,
conseguira avistar a famosa Ponte das Nações, que se encontrava em ruínas.
Paloma não deveria
lembrar-se da história da ponte que fora inaugurada em 2034 e funcionou por
algum tempo até tudo acontecer. Depois da queda dos Estados argentino e
brasileiro, a ponte servia como ponto de fuga dos dois lados que buscavam
melhores condições de vida. O problema começou em 2041 quando uma grave seca
atingiu território da antiga argentina em detrimento de uma época de bom clima
do lado brasileiro. O êxodo maior de argentinos causaram diversos problemas com
os brasileiros da área de fronteira se tornaram constante.
A população de Porto
Mauá e de moradores das povoações vizinhas resolveu contornar o problema
argentino de uma maneira bem rápida. No dia 12 de junho de 2041 a ponte foi
parcialmente destruída, impedido a livre circulação de pessoas de modo seguro.
Parte dos que resolveram atravessar pelo rio acabaram sendo alvejados pelos
moradores.
Paloma voltou para si
depois do relinchar de um dos cavalos, levando-os até uma sombra onde os
amarrou. Correu para a casa de Juan, avistando seus dois irmãos sentados num
banco do antigo jardim de inverno da casa. Estevan bebericava um chimarrão
enquanto Jose não parava de dar voltas dentro do pequeno cômodo.
-Como está papai?- perguntou
apreensiva Paloma.
- Juan disse que ele
vai sobreviver, chegamos a tempo aqui, graças a deus – suspirou Jose, - Devemos
pensar como agiremos agora. Papai queria que atravessássemos logo a fronteira,
mas agora não sei se continuamos ou esperamos as coisas melhorarem. -
Estevan esboçou uma
resposta, mas ao perceber que Juan lhe chamava seguiu em direção ao cômodo que
parecia um antigo escritório.
- Não quero saber como
o seu pai levou o tiro ou o modo que vocês chegaram aqui, mas quero que saiba que
vocês são bem vindos para ficar o tempo que precisarem, mas preciso ser franco
com você Estevan. – Juan pensava como proferiria as próximas palavras – mas creio
que seu pai não sobreviverá caso partam hoje. Ele está fraco e precisa de
máximo repouso.
- Conheci seu pai na
época da Guerra Civil Paraguaia em 2019. Servimos no mesmo batalhão durante o
conflito. – Estevan ficou surpreso. Seu pai nunca havia contado que participara
da guerra. Ele era apenas uma pequena criança quando a guerra civil nas antigas
fronteiras paraguaias estourou. Batalhões dos países vizinhos invadiram quando
após um golpe-de-estado o ditador rompeu com A Comunidade Sul-Americana e
perseguiu cidadãos dos países membros alocados dentro das terras paraguaias.
Após os batalhões de
pacificação tomarem Asunción, a antiga nação paraguaia fora assimilada pela
República Argentina e pelo Brasil, tornando-se um Estado com estatuto especial
dentro do território das duas nações. Amplamente criticado pela comunidade
internacional pelo o que muitos consideraram como uma anexação arbitrária, nada
além de críticas vazias saiu do Conselho de Segurança da ONU e das outras
potências.
Estevan lembrou que
estudara a Guerra Civil Paraguaia durante o colégio e era um tema recorrente
nas aulas de Relações Internacionais que cursava na Universidade de Córdoba.
Não chegou a concluir o curso, como muitas outras cidades, Córdoba fora
bombardeada. Estevan estava na casa de seus pais no interior de Oberá.
- O que será que estão
conversando lá dentro irmão? – perguntou Palome curiosa.
- Não consigo ouvir
Paloma, mas creio que vamos adiar a ida ao Brasil.- respondeu em Jose em seco.
A porta do escritório
se abriu. Juan apertou a mão de Estevan antes de seguir para dentro de sua
casa. Estevan se aproximou alegremente em direção aos seus irmãos, e antes que
Paloma perguntasse algo, ele disse:
- Por hora ficaremos
aqui. Até nosso pai se recuperar, Juan é um velho amigo de papai.-
____
Passara uma semana que
haviam chegado nessa pequena comunidade, Nestor já andava novamente, e os
planos para cruzarem a fronteira se concretizariam na noite do dia seguinte. Mas
o improviso foi necessário, pois não esperavam o que aconteceu naquela noite.
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